Caminhar com Ulisses é despertar para aprender o que de fato vale a pena e a outra opção é correr longos passos rumo a mediocridade.
Toda limitação é medíocre.
Quando um cientista se acomoda é uma perda lastimável. Mas quando o cientista quer limitar o objeto do seu estudo, a vida perde, perde-se vida e a especulação de que tudo tem um fim se fortalece.
Aos vinte anos eu descobri que existia uma opção para um universo mais abrangente, precisaria renunciar a mediocridade, abdicar da busca pela segurança, garantias, certezas inquestionáveis, salário fixo, aposentadoria… – esta parte foi mais fácil – o sonho de encontrar o inadmissível falou mais forte. Segui adiante e na partida me alimentei com poesias de Fernando Pessoa, entendi os primeiros passos quando assisti “Eles não usam Black-Tie” de Gianfrancesco Guarnieri, um emblema de adeus a mediocridade, também houve algumas músicas, muitos livros e, enfim, descobri o autodidatismo. Quebrei o primeiro cadeado: estudava o que me interessava, estudava porque precisava compreender, estudava para mim. Estudar para ensinar, para vender, para me tornar professora, nada disso me interessava; o meu foco estava além das nuvens e refutei qualquer compromisso que me levasse a submissão dos títulos, da grana, do poder mesquinho que se resumia a comer e dormir, comer bem e dormir mal com a consciência pesada e o inconsciente abandonado ao descredito. Tornei-me autodidata.
Encontrei na mitologia a esperança de compreender melhor a alma, nenhuma figura mitológica é medíocre, para elas os mortais são lendários, inadmissíveis por quererem tão pouco e tudo isto me trazia de volta a Fernando Pessoa e seus heterônimos, seus personagens internos e aos poucos fui descobrindo os meus. Outras vidas? Vidas outras? Que diferença faz quando se é possível viver e reconhecer a existência de cada uma delas?
No mundo concreto (é uma utopia chamar de concretas relações que se destroem tão fácil), no mundo concreto a minha vida estava um desastre, sempre sem dinheiro, oras comia, outras não; minhas relações pessoais um desastre total. E, o que mais me incomodava era a facilidade para reverter todo este quadro, tudo o que exigiam eu não teria nenhuma dificuldade para cumprir, eu vejo pessoas falando sobre os caminhos que seguiram por não terem outro para ir, que não saberiam ser diferentes. Nunca foi assim para mim, eu poderia facilmente me dobrar e me submeter as exigências sociais que trariam as seguranças, as garantias e me reabilitaria minhas relações, eu tive muitos caminhos para ir, mas eu não quis, simples assim: eu não queria. Minha família me deu inúmeras oportunidades para me reabilitar perante ela, mas eu não quis, preferi os Caminhos de Ulisses, procurar a essência da vida, dar continuidade ao meu autodidatismo e, principalmente, só fazer o que eu acreditava para ser feito. Acreditar no fazer é o que faz acontecer, acreditar no que eu faço era e é a minha circulação pela coerência e coesão com o querer e fui querendo e estou querendo.
Quando os conselhos me falaram sobre o futuro, eu pensava em antiguidade, aquele tipo de futuro, para mim, era antigo, mofo, um caminho já percorrido, tanta gente o percorreu e, quando o futuro chegou, diziam que não havia mais nenhum lugar para onde ir, encontraram o seu fim por terem perseguido o futuro. Esta percepção me levou a ter pânico do futuro.
Quando desfrutei do futuro de muitas pessoas encontrei-as amargas, tristes, temendo a morte; costuravam e descosturavam o corpo na tentativa de voltar ao passado; trocavam as suas esposas ou maridos por homens ou mulheres mais jovens – um passaporte para o passado. Temi este futuro que leva as pessoas a querer o passado e resolvi viver o dia-a-dia, uma vida por dia, um dia para cada vida. Pensei em Adão em seu primeiro dia, ele ainda não sabia que existiria um amanhã; pensei em Deus construindo o mundo em sete dias e questionei: o que O fez parar de criar? O mundo criado por Deus estava acabado, terminado, concluído? Se fosse assim existiria algo maior do que o mundo? O mundo que Ele criou em sete dias? Porquê, para nós humanos, pelo menos, o mundo começou quando Deus o concluiu no sétimo dia. O que seria? Muitas leituras e vivências empíricas trouxeram-se uma certeza: se no sétimo dia Deus criou o mundo a partir deste dia criou a vida humana e é obvio que a vida é infinitamente maior que este mundo. Depois pensei o contrário, será que no sétimo dia Deus não se encontrou com o seu futuro e cansado resolveu voltar ao passado buscando, no passado, a sua juventude? Ou simplesmente não parara de criar, sabiamente parara de contar? No sétimo dia teria descoberto que ficar contanto os dias e as suas criações era uma limitação? Parara de contar e continuara criando? E, entre as três opções, fiquei com esta, até porque os outros dois questionamentos não me trouxeram respostas, simplesmente me levaram a formular um terceiro, e aí eu vi que quem estava contando era eu. Voltei as leituras, no meu autodidatismo, coeso e coerente, “viver não é preciso” não há qualquer previsão no viver, é a imprevisibilidade da vida que a torna eterna, “eterna enquanto dure” cada vida, e continuei caminhando com Ulisses, batalhas, tempestades rumo ao imponderável me afastando cada vez mais de medíocres fins.
Os anos se passaram, os livros se multiplicaram na minha casa, dava-os de presente, comprava-os de novo; passei a me interessar por autobiografias e descobri que o mais importante na autobiografia não é a história que se conta, é o autor ter descoberto que sua vida era interessante e que alguém poderia se interessar por ela. Não seria aí Deus recriando o mundo? Estimulando o interesse dos autobiografados, primeiro para sua vida e escrevendo para a vida dos outros?
Em minha volta o mundo concreto parou de desabar porque parei de construir, desisti das relações concretas; concretude nas relações, revestimento de mediocridade, “a tudo dizes que sim, a nada digo que não para poder construir esta imensa harmonia que tornam velhos os corações”.
Viver cada vida um dia é a única forma real de se construir uma vida sólida; o que ainda amanhece com você no dia seguinte é porque faz parte da sua jornada. Quando amanheço e encontro heranças do dia anterior sei que pertenço ao que me acompanha e o que me acompanha me pertence porque ambos temos a mesma jornada; o que fica e os que ficam pela noite perderam-se ou se encontraram em um amanhecer diferente do meu rumo, da minha estrada, de um caminho que só é meu porque eu sigo por ele e não é unificadamente meu por existir outros que escolheram o mesmo caminho e assim compreendi que é o caminho que mantém ou retira as pessoas das nossas vidas. Deixei de acreditar que eu afastava as pessoas ou que as pessoas se afastavam ¾ este é o caminho que eu sigo e é o que chamo de Caminho de Ulisses.
Um dia, caminhando pela beira da praia, compreendi que havia terminado um ciclo, um novo caminho se anunciava. Depois percebi que o caminho era o mesmo, uma vida nova se apresentava eu me sentia velha, cansada, muito cansada, muito velha e só não parei ali porque nunca havia acreditado em futuro, senão teria sido uma grande oportunidade de dar um fim, me aposentar da vida ou, mediocremente, querer voltar ao passado para o sentimento bucólico de retornar à juventude. Fui salva por não acreditar no futuro e aí não fiz nada disso, perguntei ao mar: E agora o que é que vem? Andei até que a noite chegou, dormi, acordei e pensei no segundo dia de Adão, voltei à beira da praia buscando-a como uma ponte entre o ontem e esta nova manhã e ouvi do vento:
– Você agora vai se inclinar e conhecer o para didatismo.
– O que é isto? Perguntei e a voz (do vento) respondeu:
– O paradidatismo é a arte de aprender em ato contínuo com o tempo e exercitar em ato contínuo com a natureza.
Como se fosse um ditado, a voz, do vento, desafiou-me com uma lista de novas possibilidades, continuou falando, gritando, se impondo e eu pensei no terceiro dia de Adão, não sei se era o terceiro, mas pensei no dia em que ele escolheu os nomes e nomeou as outras criações divinas – a lista implodia na minha cabeça: paradidatismo, parafilosofia, parananatomia…
Vou caminhando com Ulisses rumo a novas batalhas, tempestades sem nenhuma prevenção, porque não tem como se prevenir, preparar ou precaver para uma batalha desta natureza. Deixo os prejuízos, os prejulgamentos, os preconceitos para os medíocres que desconhecem que toda e qualquer previsão nos leva para o tal do futuro de onde eles querem fugir assim que aportam no sucesso das suas previdências. Continuo preferindo os caminhos da providência que sem me levar para o futuro sempre acordam comigo na manhã seguinte.
Halu Gamashi
Ubatuba 19/7/2011 12h28min
gratidão estou integrada com o que leio aqui
Muito forte esse texto, estou relendo e me impactou muito mais nessa releitura, e conserteza vou retorna à lê-lo, e me impactar por outros prismas.